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Autismo

Maternidade atípica em dose dupla

Família do Vale do Iguaçu conta sua história com seus dois filhos autistas

Publicado em 05/04/2024 às 09:24
Atualizado em

(Foto: Arquivo da família)

O mês de abril, é dedicado a Conscientização do Autismo, e voltado para o debate em sociedade sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA).

O TEA é um transtorno que se caracteriza, entre outras manifestações, por dificuldade de interação social e presença de comportamentos repetitivos. Apresenta diferentes graus, classificados de leve à grave.

Em Porto União, a história da família da Ana Paula dos Santos Ramos e do Marcos Ramos, que são pais do Henrique Ramos de 14 anos e Bruno Manuel Ramos de 3 anos, ambos com autismo, traz uma bela reflexão sobre o tema. A mãe relata toda sua história de amor,  carinho e desafios enfrentados pela família, confira no texto abaixo:


"Desde quando era criança, já tinha bem definido oque desejava para o meu futuro, formar uma família e ter filhos sempre foi uma certeza para mim.

O meu esposo Marcos, sempre compartilhou do mesmo desejo que eu, e percebo que as crianças eram as peças do quebra-cabeça que faltavam para completar nossa felicidade.

Mas como não existe um manual que diga passo a passo como educar um filho, até porque cada ser humano é único, os desafios eram muitos. Fui mãe aos 20 anos de idade, o meu tão esperado Luis Henrique chegou! Meu coração estava cheio de alegria, mas o conflito que sentia era grande, pois apesar dele ter sido muito desejado, precisava continuar trabalhando e estudando para que tivéssemos um futuro estável.

Minha avó cuidava dele quando estava fora, ele sentia a minha falta e eu também sentia a dele, mas na época, não tinha outro caminho, pelo menos não que eu no meio do caos, conseguisse enxergar. O tempo foi passando, comecei a perceber, apesar de ficar pouco em casa, que a demora para andar e falar eram evidentes. Começou a andar com um ano e meio, e o que sempre ouvia dos meus familiares era que “cada criança tem seu tempo”, ouvia isso de pessoas mais experientes que eu, portanto acreditava. Com a fala era mesma coisa, com dois anos falava palavras soltas apenas.

 Pouco mais tarde, ganhou uma grande paixão por carrinhos da hotweels. Tinha vários, e sempre os organiza por tamanhos e cores e não gostava que tirássemos os carrinhos dos seus devidos lugares. No supermercado, colocava os produtos num encaixe perfeito, como se fosse um mosaico. Também não usava roupas de lã ou permitia que as etiquetas permanecessem em suas roupas. E suas brincadeiras, sempre foram muito agitadas e sempre acabavam mal, pois não conseguia controlar sua força ou medir os perigos.

Contudo, com a falta de conhecimento aliado à vida conturbada, os anos se passaram. Percebia que tinha algo diferente, mas será que era algo da minha cabeça? Meu esposo e eu, recebíamos muitas críticas em relação a criação do nosso filho, Luís. Chorei muitas vezes e me perguntava o porquê de tais comportamentos, acabava sempre me sentindo culpada, afinal as pessoas sempre falavam, que o” Luis era mimado, faltava limites, precisava dar umas boas palmadas” ou então, se eu ou meu marido chamasse a sua atenção, estávamos sendo muito ríspidos com ele.

O fato, é que quando as coisas vão bem, todos querem ter uma co-participação, caso contrário, a culpa é sua, sim, porque sempre tem que haver um culpado.

Na escola, não era diferente. Sempre o mais falante, com falas inapropriadas, fora do contexto, não sabia a hora de parar, baixa tolerância quando sentia-se frustrado, muitas vezes tinha rompantes, assim chamados pelas professoras, o que na verdade eram crises e não sabíamos disso.

Mas quando estava com oito anos, aconteceu uma situação na escola que me chamou a atenção. Quando chego na escola para buscá-lo, ele vem correndo em minha direção aos prantos. Tentei acalmar ele e saber oque havia acontecido. E o que pude entender entre meio o choro desesperado, é que ele havia quebrado a régua de uma colega, pois quando passava entre as carteiras esbarrou com sua jaqueta na régua que estava em cima da carteira da menina e a régua caiu no chão e quebrou.

Não conseguia entender o porquê daquele desespero. Mas ele continuou, disse que a professora guardou sua régua em sua gaveta, até que sua mãe comprasse outra para devolver para colega, alegando que tivesse feito de forma proposital.

Então, engoli o choro, respirei fundo e fui conversar com a professora, ele estava muito desesperado, eu não podia esperar até o outro dia para resolver a situação. A professora me relatou o ocorrido, inclusive que o Luis chorou desde alguns minutos antes do recreio, até o final da aula. Me senti agoniada, por ver ele sofrendo de tal forma, por conta de um acidente.

Eu afirmei que no dia seguinte ele iria levar outra régua para a menina. Mas deixei claro que o Luís não tem o perfil de mentir, é exatamente o oposto, é muito sincero. E a professora diz “será mãe?” Essa pergunta extremamente irônica, me doeu mais do que um “tapa na cara”.

No dia seguinte, solicitei uma reunião, em que a professora não pode comparecer, mas do mesmo modo, acabei me posicionando, pois se tem uma coisa que o Luis não falta é com a verdade. Transferi ele de escola, mas os “problemas” continuaram. E sei que muitos vão pensar, sim, os problemas continuaram porque o problema é ele. E a resposta está errada, o problema está em muitos profissionais desatualizados, que não buscam obter mais conhecimento e empatia com o próximo, preceito este que não é ensinado em nenhuma universidade.

Mas o ápice foi quando ele foi convidado a participar de um aniversário do meu afilhado, filho de uma amiga de infância minha. O Luis estava muito animado, pois teria cama elástica na festa, e ele amava pular, era uma de suas estereotipias e eu não sabia. O aniversário era apenas para crianças, então o deixei e voltei para casa. Sei que pode parecer exagero, mas estava com um aperto no coração, quando recebo a mensagem, que precisava ir buscá-lo o mais rápido possível.

Teve um desentendimento com um convidado da festa e chorava sem parar, não conseguiam acalmá-lo. Me desculpei pelo ocorrido, sem entender realmente o porquê de tamanho descontrole. Nesse dia, choramos juntos, uma mistura de sentimentos me vinha à cabeça, não conseguia compreender aquela reação e isso me deixava cada vez mais agoniada. E se eu que sou a mãe dele não entendia, imaginem os outros, ficaram assustados assim como eu. E quando o questionava o porquê daquele comportamento, não sabia dizer. Claro, hoje tudo faz sentido, pois a dificuldade em falar sobre si, sobre sua rotina, seus sentimentos, é uma característica do TEA.

Conversei com meu esposo e decidi levá-lo a uma psicóloga, precisava entender o que se passava com meu filho. Iniciamos a avaliação neuropsicológica e ao término das sessões, tivemos uma surpresa. “Seu filho tem TOD (Transtorno Opositivo Desafiador)”, diz a psicóloga. Foi um choque para mim, nem conhecia a fundo o que representava esse transtorno. Mas é claro, que todas as características sensoriais, rituais, falha na comunicação que o Luis apresentava a psicóloga desconhecia, pois relatei à ela as principais reclamações das escolas, acontecimentos em que ele tinha as crises e a profissional chegou a esse diagnóstico. Infelizmente a ignorância minha e da minha família custou muitos anos sem ele ter um tratamento adequado, pois me recusei a aceitar, não o levei no neuropediatra, nem contestei a avaliação. Meus familiares diziam que estava inventando problema, que estava “louca”. Então deletei aquilo da minha mente e preferi seguir, ainda sem um rumo, acreditando ser apenas uma fase, ele ia amadurecer.

A vida seguiu, em “trancos e barrancos”, o Luís sempre pedia um irmãozinho, e eu e meu esposo desconversávamos. Até que um dia, quando ele tinha 10 anos de idade, ele diz “Mãe, então quer dizer que você e o pai vão privar meus filhos de ter um tio ou uma tia?” Aquilo me doeu profundamente, percebi o quanto eu e meu esposo estávamos sendo egoístas. Então nos preparamos para mais um filho.

Lembro-me bem quando iria ver o sexo do bebê, o Luis estava irredutível, precisava ser menino. Uma inflexibilidade que não entendia, tudo bem preferir um menino, mas o problema é que fazia escândalos quando falávamos que poderia ser uma menina, que quem escolhe é Deus.

No dia da ultrassom, ele foi junto comigo, e confesso que estava, mais uma vez agoniada, porque se fosse menina, iria ser escândalo na certa, e iria ver olhares de reprovação do médico, atendentes, já não tinha mais forças, estava esgotada.

Recebemos a notícia que esperava um menino. O olhinho do Luis brilhava como duas jabuticabas, e um sorriso encantador.

O Bruno chegou, cheio de saúde, com 3.900 Kg. Foi a primeira vez que dormi sem o Luis. Mas fomos fortes, era para uma boa causa. O Bruno, um menino muito lindo, olhava nos meus olhos e sorria, que alegria. Mas já na primeira noite, quando íamos trocar a fralda dele, ele chorava demais, o choro não cessava, as enfermeiras entravam no quarto para saber oque estava acontecendo, mas não sabíamos.

Lembro quando os parentes vieram para a primeira visita, lembro inclusive do horário, eram 18 horas, e ele começou a chorar desesperado, até que as visitas percebendo que não conseguíamos acalmá-lo foram embora. Senti uma mistura de constrangimento com preocupação com meu filho. Será que sentia alguma dor?

O banho era muito sofrido, sempre chorava muito, escutava as dicas dos mais velhos. Eram várias, tentava de tudo, mas nada surtia efeito. Quando ele dormia, falávamos cochichado, pois se acordasse chorava por um bom tempo. O pediatra, ficava intrigado, pois o choro incessante era a noite. Mamava no peito a noite toda. Será que tinha fome? Ou será intolerância a lactose? Parei de tomar leite para ver se melhorava, mas nada. Fizemos a tentativa de inúmeras mamadeiras e leites, mas não aceitava.

As fezes, ora eram bolinhas, ora diarreia, ou ainda, ficava dias sem fazer. Como diz a minha mãe, fazia “via sacra” no consultório do pediatra. Dormia muito mal, as vezes acordava as 3 da manhã e queria brincar, comer, tudo, menos dormir.

Todas os dias pensava que eu precisava melhorar enquanto mãe, pois estava fazendo tudo errado, se ele sofria era por falta de organização na rotina, tinha alguma dor, não sabia o que, mas me sentia culpada, mais uma vez.

Fui me acostumando com aquela rotina, sem dormir, sem uma alimentação adequada, pois em primeiro, sempre vieram meus filhos, depois comia oque tinha e dormia quando podia também.

Meu esposo e minha família, sempre me ajudaram muito, mas o fato é que ele só me aceitava nos momentos de crise, e tinha crises todos os dias.

Continuei trabalhando, pois as despesas no final do mês não entenderiam que meus filhos precisavam de mais atenção. Então começaram os conflitos com a escola. Mas com a chegada da pandemia, pude trabalhar home office e cuidar dos meus amores. Me desdobrava para dar conta de tudo, mas estava muito feliz em poder ficar mais perto deles.

Comecei a perceber que aprendia uma palavra hoje e depois, por mais que falasse inúmeras vezes a mesma palavra ele não pronunciava mais aquela palavra. Minha tia querida, que mora em São Paulo, sempre muito presente em nossas vidas, em uma das chamadas de vídeos que fazemos, ela me questionou “Ana, será que ele ouve?” pois não atendia aos nossos chamados.

Sempre foi extremamente seletivo com os alimentos. Tudo devia estar separado no prato, não comia e ainda não come carne, a não ser empanada, sorvete aceita só o “preto”, bolo também só de chocolate. Enfim, para conseguir que ele aceitasse a banana tive que oferecer todos os dias por um mês, até que finalmente aceitou, não é sua preferida, mas não tem recusa, pelo menos dessa fruta.

Com o tempo, fui percebendo que a fala não desenvolvia, e com o retorno das atividades normais pós pandemia, as crises se intensificaram. Lidar com a escola, mudança de rotina, eram choros de mais de uma hora após a saída da escola e para entrar na escola não era fácil.

Aos domingos, tomamos o café da manhã na casa dos meus pais. E sempre após o café, o Bruno trazia eu e meu marido até o nosso carro e pedia através de sinais, que déssemos uma volta. O problema que até o passeio matinal no domingo era tenso. Pois o Bruno, tinha a rota definida em sua cabeça. Ia indicando as ruas para o meu esposo entrar. O detalhe é que meu marido nem sempre via suas indicações, pois estava prestando atenção no trânsito. Então, quase sempre, tinha crises no carro. Teve um dia, que meu marido, Marcos, falou para irmos um pouco mais longe, pois acreditava que o Bruno iria se agradar com a paisagem, mas isso não aconteceu, pois o trajeto mudou. Em meio a crise, meu marido decidiu parar para levar ele numa bica de água natural da cidade de São Miguel, em que estávamos. A situação piorou, pois o Bruno, que já estava em crise, saiu correndo em direção a estrada, um desespero. Consegui agarrá-lo, com muito esforço, colocamos ele de volta no carro e seguimos.

Eram gritos e choros, tentava abrir a porta do carro em movimento, eu chorava junto e meu marido por falta de conhecimento, achava que o mimava demais.

São inúmeras as crises, os barulhos sempre o atormentavam, barulho de liquidificador, aspirador de pó e até mesmo a conversa no momento das nossas refeições, começava a gritar e a chorar, se jogava no chão. O ápice do Bruno foram as crises intensas que tinha na hora do banho, pois não suportava a água no coro cabeludo, batia a cabeça na parede do banheiro, não sabia como agir.

Até que em uma formação pedagógica que participava como professora, encontrei a professora Neusa, em que me relatou a história de seu neto, que faz parte do espectro do autismo. Escutando-a falar, parecia que estava vendo o Bruno, vendo a minha surpresa, me orientou a levá-lo fazer uma avaliação. Assim o fiz. Num primeiro momento, não contei nada a ninguém.

Quando o diagnóstico foi fechado, em TEA nível I, foi uma sensação de alívio, pois tinha um caminho a seguir. Mas agora, tinha outro desafio, além de iniciar as terapias do Bruno. Agora com mais conhecimento, comecei a recordar os comportamentos que o Luis tinha e ainda tem. E linkei com as características do Bruno. E muita coisa começou a fazer sentido.

Fizemos novamente a avaliação com o Luis, e a psicóloga junto com a psiquiatra, chegaram a conclusão que ele tem o diagnóstico de TDAH e TEA nível I. Agora tudo fazia sentido, tinha resposta para todos os meus porquês.

Minha família tem uma longa trilha a seguir, cheia de desafios e espinhos, pois a falta de conhecimento, não atinge apenas leigos, mas também profissionais da educação e da saúde e isso é assustador ao meu ver. E também, como mãe, preciso lutar por direitos que já estão previstos em lei. A luta é diária, sei que existem inúmeras falas sobre o autismo, porém vejo que o discurso está dissociado da prática, precisamos mudar esse cenário.

Mas posso afirmar, com toda certeza, que o diagnóstico não é um rótulo e sim um caminho a seguir. E sou a mãe mais feliz do mundo, por ter dois meninos lindos, com os sorrisos mais lindos que já vi. Minha vida e do meu esposo, jamais teria sentido sem eles, que são nossas razões de viver".


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